RIO — Dois anos e cinco meses depois da devastação causada por fortes chuvas, que mataram mais de 900 pessoas, e de denúncias de corrupção levarem à queda de prefeitos e secretários municipais, a Região Serrana volta a ser o centro de novas irregularidades na aplicação de recursos públicos. Agora, técnicos da Controladoria Geral da União (CGU) e procuradores do Ministério Público Federal investigam uma rede de empresários e funcionários públicos estaduais suspeitos de desviarem pelo menos R$ 1,9 milhão. Esse dinheiro deveria ter sido usado na recuperação de escolas em municípios atingidos pelas enxurradas de 2011.
O desvio de recursos públicos passou a ser investigado pela CGU e pelo MPF depois de uma inspeção feita pela fiscalização do Tribunal de Contas da União. O TCU analisou um repasse de R$ 77 milhões feito à Secretaria estadual de Educação do Rio, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação.
Diretora foi pressionada por fiscal
Até agora, foram encontradas supostas fraudes nas obras de 13 escolas da Região Serrana. Além disso, descobriu-se o envolvimento de nove empresas e 11 funcionários da Empresa de Obras Públicas do Rio (Emop) — ligada à Secretaria estadual de Obras —, que teriam atuado como fiscais dos contratos. Seus nomes estão relacionados num relatório feito pelo TCU. O tribunal afirmou que há fortes indícios de participação de servidores públicos nas fraudes, seja por má-fé ou por agir em conluio com as empresas beneficiadas com recursos.
Numa das escolas, uma diretora informou ao TCU ter sido pressionada por um fiscal. Ele pretendia, mesmo sem a obra ter sido executada, fazer a funcionária assinar um documento atestando o contrário.
O relatório do TCU constatando irregularidades na aplicação de recursos federais foi votado em plenário no mês passado. A relatora do processo foi a ministra Ana Arraes. Ela e os ministros reunidos decidiram pela instauração de processo, com a citação dos responsáveis pelas supostas fraudes. Uma cópia da decisão foi encaminhada à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, em Brasília.
As representações do Ministério Público Federal na Região Serrana também receberam o relatório e estão investigando o caso. Já a CGU informou que enviou técnicos à região, especialmente aos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo (escolhidos aleatoriamente), e encontrou irregularidades na aplicação do dinheiro. Basicamente, segundo a Controladoria Geral da União, foram observadas reformas e obras fantasmas. Algumas escolas sequer foram afetadas pelas chuvas. Técnicos identificaram ainda, em outros casos, superposição de contratos: colégios que já haviam passado por reformas antes das chuvas teriam sido atendidos novamente pela Emop, supostamente para realizar os mesmos serviços.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, segundo o TCU, transferiu R$ 74 milhões para o governo estadual executar obras de reforma nas escolas atingidas pelas enxurradas. Os recursos foram descentralizados pela Secretaria estadual de Educação, que repassou cerca de R$ 23,6 milhões para a Emop, responsável por executar todas as ações necessárias.
O TCU vistoriou 19 escolas onde o total de recursos aplicados atingiu R$ 7,8 milhões, o que representa 62% do total dos valores gastos. Foi constatado que, embora as empresas tenham recebido pelos serviços, eles não foram efetivamente realizados. Os valores desviados somaram R$ 1.963.458,78.
Para verificar as denúncias, repórteres do GLOBO percorreram, na última semana, as escolas citadas nas investigações e confirmaram com os professores — que preferiram não ser identificados — que os serviços não foram executados. Em Petrópolis, a Escola Estadual Araras teria passado por reformas, executadas pela Engeproc Construtora LTDA, que recebeu cerca de R$ 255 mil de recursos liberados emergencialmente, sem licitação. O problema é que ninguém viu funcionários dessa empresa trabalhando no local. Além disso, professores afirmaram que o colégio não foi castigado pelas chuvas de janeiro de 2011.
Na vizinha Teresópolis, a mesma coisa: do ginásio prometido à Escola Estadual Euclydes da Cunha, só foi concluída a fundação. Como em Petrópolis, a empresa contratada sem licitação para executar uma série de serviços foi a mesma Engeproc. Professores disseram que o colégio ainda necessita de várias obras.
— Vários serviços não foram efetivamente realizados. O caso do ginásio é o maior exemplo. As obras pararam na fundação — disse um professor da Euclydes da Cunha.
Colégio fechado há mais de dois anos
O caso mais grave de suspeita de irregularidades aconteceu na Escola Estadual Galdino do Valle Filho, no Centro de Nova Friburgo. O colégio está fechado e em obras há mais de dois anos. A empresa Concrejato Serviços Técnicos de Engenharia S/A recebeu, em 2011, cerca de R$ 730 mil do governo do estado em contratos de emergência e deveria entregar o colégio reformado no mesmo ano. Até a semana passada, isso não havia acontecido. A empresa ainda trabalha na unidade, onde uma placa revela outro valor para a reforma parcial: R$ 1,455 milhão.
A Galdino do Valle atende cerca de 500 estudantes em três turnos, do 5º ano do ensino fundamental até o 3º ano do ensino médio. Com a escola fechada para obras que nunca terminam, os alunos foram transferidos para salas improvisadas no Ciep Licínio Teixeira, no bairro de Olaria, localizado a cerca de três quilômetros de distância.
Comissão da Alerj acompanhará denúncias
O presidente da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), deputado Comte Bittencourt (PPS), informou que as denúncias são graves e serão acompanhadas pelos integrantes do grupo.
— A situação dos alunos e professores da Galdino do Valle já era conhecida pela comissão. Eu pessoalmente estive na escola há pouco mais de um ano. Agora vamos voltar — afirmou Comte Bittencourt.
O deputado também informou que amanhã a comissão fará uma audiência pública na Câmara de Petrópolis, sobre a situação da rede estadual de educação na cidade. O encontro foi pedido por um grupo de professores.
— A comissão pretende ainda fazer uma visita à Escola Estadual Araras e a outras unidades da rede na cidade — garantiu o presidente da Comissão de Educação.
Secretaria de Educação e Emop negam acusação
A Empresa de Obras Públicas (Emop) e a Secretaria estadual de Educação afirmaram, em nota oficial conjunta enviada ao GLOBO, que não houve desvio ou mau uso do dinheiro público. A enxurrada na Região Serrana aconteceu em em janeiro de 2011 e somente entre julho e agosto daquele ano a secretaria e a empresa receberam os R$ 74 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Segundo a nota, o relatório do Tribunal de Contas da União que aponta suspeitas de irregularidades na aplicação dos recursos foi enviado à Emop em maio passado. No documento, ainda de acordo com o governo do estado, o TCU “faz questionamentos sobre serviços que não teriam sido executados efetivamente pelas construtoras em obras de 13 escolas, que atingiriam o valor de R$ 1.963.458,78 ”.
Segundo o estado, “tão logo o relatório foi recebido, a Emop iniciou uma análise dos questionamentos” e já tem uma parecer concluído — que está passando no momento por uma revisão, para ser entregue na próxima semana ao TCU —, comprovando a aplicação correta dos recursos.
A nota diz também que, dos R$ 23.673.715,35 repassados pela secretaria à Emop, foram gerenciados R$ 12.666.382,48 em reformas de escolas. E que a diferença de cerca de R$ 11 milhões foi devolvida à Secretaria de Educação, que depositou todos os recursos em conta remunerada no Banco do Brasil, exatamente para evitar mau uso e desvio do montante.
De acordo com o governo, “isso ocorreu porque os colégios estaduais foram recuperados com recursos próprios, pois o estado não poderia aguardar a liberação dos recursos por parte do FNDE, uma vez que, se assim procedesse, teria prejuízo para o inicio do ano letivo, e os alunos ficariam sem aulas. O montante utilizado nessas unidades do estado, com verba própria, foi de R$ 14 milhões”.
O Globo